Sunday 17 August 2008

Artigos e um livro

Esporadicamente, recebo do meu grande amigo Bruno artigos do seu pai, Daladier Pessoa Cunha Lima. Médico de formação, Professor e Educador por motivos altos, adiciono ser ele também moralista de carteirinha, não só na imagem e gestos como na prática. Tenho o privilégio da amizade de Bruno, e orgulho também. E por meio dela, conheci, através de anos de convivência, a mão invisível e poderosa do educador e professor Daladier. Homem íntegro, diriam alguns. Eu, como mero observador de uma geração não tão madura, de uma geração trinta anos mais nova, mais ou menos, e irresponsável e besta, diria resoluto: Grande homem! Seu Daladier – eu, que dispenso o Professor e o Doutor como pronome de tratamento, pingo apenas um Seu, fruto de atrevimento – sempre teve rédeas estupendas sobre Bruno. Ouve-se com frequência: Costume de casa vai à praça. A praça de Bruno, pois, sempre foi ordeira, sem vícios, comedida, gentil, moralista e fiel, sobretudo fiel aos amigos. Notei, com o passar dos anos, que ela era a extensão da casa de Daladier. A elasticidade era poderosa, e hoje, me atrevendo no julgamento, acrescento ser ela mais do que justa. Dos meus poucos amigos – segundo Fabiano Holanda, outro querido, após os trinta anos um homem não faz mais amigos verdadeiros –, Bruno foi o único que seguiu uma dieta moral de qualidade. Entregou-se generosamente e sem caprichos ao trabalho, desde cedo. O resultado é gritante.

Dos artigos que recebi, “Lembranças de médico” me agradou na medida exata. “O mundo pós-americano” fez o trabalho reverso. Me explico. Creio que um homem que atinge uma certa idade tem muito a contar. Após os sessenta, setenta anos, um homem, sobremaneira o que saboreou a vida através do trabalho, e por meio dele construiu uma história de sucesso – e tendo esse homem a habilidade da escrita e a oportunidade de um espaço de destaque num jornal, as estórias e histórias deveriam derramar como um vulcão. Opiniões? Que elas fiquem para exagerados como eu. Nada mais exuberante que contos de um homem vivido escritos com estilo.

Por exemplo, estou lendo o rascunho do livro de João Costa. Confessou-me ele, outrora: Sou um escritor fracassado, já escrevi uns dez livros, todos inacabados. Acredito, acredito. Porém, nunca li nenhum. Portanto, esse é o primeiro livro com a rúbrica João Costa que tenho acesso. E emendo, provavelmente com a pressa e parcialidade que um Daladier Pessoa Cunha Lima não teria – muito bom! É verdade, João é grande amigo – abrindo um parênteses para Fabiano Holanda, lembro-o ser João uma aquisição que fiz após os trinta anos. Ademais, estou eu longe de ser crítico literário, de debutantes ou veteranos. No entanto, me arrogo o direito de opinar e tornar pública minha opinião. O enredo prende o leitor, a prosa entre os personagens parece adequada e o estilo do autor, admirável. O idiota da objetividade de Nelson Rodrigues poderia perguntar para que a imparcialidade de “o leitor” se o único, aparentemente, tem nome. É verdade, é verdade, mas desde já emendo: sou um leitor orgulhoso. Orgulhoso do meu amigo e de sua coragem de escrever um livro, sobretudo após dez virtuais fracassos. Lendo-o, vejo um pouco de João Costa nele, associação essa só permissível aos mais chegados. Vejo, sobretudo, o voraz leitor de livros de terror e suspense. E já basta, pois já fui indiscreto e opinativo o suficiente, escrevendo sobre algo inacabado e aparentemente secreto.

Que João me perdoe. E que Seu Daladier, um dia, tenha o privilégio de lê-lo, devidamente acabado e autografado. E que, diferente de mim, possa escrever um artigo interessante sobre seu passado rico e glorioso.


Londres, 17 de Agosto de 2008.

Sunday 20 April 2008

Ordinário compensável

Entre as carinhosas respostas ao meu último texto, uma abriu-me largo sorriso. Não pela resposta em si, apesar de ter sido ela o ponta-pé deste artigo. O missivista? Darío Nota. E revelada a identidade, vamos à ficha.

Darío foi meu colega de trabalho anos atrás. Um atrevido poderia dizer – além de colega de trabalho, argentino. Mas não, não é isso. Ou melhor, isso também, mas algo mais. Estudante de Letras, professor de espanhol, o que ele mais gostava e ainda deve gostar, se a minha matreira observação não falha, era de um bom papo e um generoso decote. Como chamamos em inglês, para o primeiro, people person; para o segundo, womaniser.

Privilegiado por ter sido seu aluno quando o tempo me cabia, suas aulas eram sempre uma atividade social em meio a exigência professional, que por sua vez adequava-se docemente ao estilo do professor. Darío via com impaciência as fronteiras do livro didático da vez, e este era sobremaneira uma referência sutil à essência, para ele, do aprendizado, e o que unia o social ao didático: o debate. Com o debate, a troca de idéias, a classe sem fronteiras, o Gardel ia longe – aliás, se esbaldava no próprio lar. Tópico levantado pelo maestro, cada aluno era instigado a dar opiniões, por mais estúpidas que fossem, e por estupida entenda-se o sentimento de aluno para aluno, já que para o professor, pelo menos pela seriedade e atenção dedicada em seu olhar àquele exposto ao escrutínio, cada opinião era tratada com imperiosa relevância. E indo além, elas, as opiniões, eram estimuladas com perguntas e comentários do professor, ficando assim a mercê da auto-crítica e desenvolvimento. Guardo com imensa estima as aulas externas de Darío, em Ponta Negra, no Praia Shopping ou qualquer bar na orla da praia de Ponta Negra. É difícil pensar em aula num ambiente desse, por mais que so falássemos em espanhol. Melhor seria chamá-la de boemia didática. Igualmente, me deliciava quando, num sábado qualquer, estando só na minha sala trabalhando, sou interrompido com batidas na porta. Fulminante e respeitoso, entra Darío. “Ranyere, cabra safado, estou te incomodando?”. (Ele nunca incomodava e eu sempre deixava bem claro, porém sua reticência argentina era grossa.) “Comecou a estudar na minha sala uma menina que você precisa ver, rapaz. Nunca vi igual!! Sai da sala, vamos lá fora. É intervalo, deixa eu te apresentá-la.” E saíamos os dois, ansiosos, ansiosos.

Mas voltando à resposta do meu querido Darío: “Obrigado pelo texto. Confuso pelo válido pelo exercício. Abraços. Darío” Nunca duvidei da proficiência do argentino na língua de Cabral, portanto faço uso da amizade para meter um “mas” no lugar do primeiro “pelo”. Cometido o atrevimento, vamos ao que interessa.

Disse Janer Cristaldo, o habilidoso escriba a quem me referi no artigo passado: “Eu também migrei um dia. Foi no início dos anos 70. Percorri toda a Europa e escolhi um país para ficar, a Suécia… Lá vivi um ano, aprendi a língua do país, mas não a ponto de usá-la com perfeição. Olhei, vi... e voltei. Voltei quando chegou a hora de lavar pratos. Nunca lavei pratos em minha casa, não iria lavá-los para suecos. Ganharia três ou quatro vezes mais que um jornalista no Brasil. Mas considerei que não havia nascido para lavar pratos.” E ainda: “Conheço de muito perto uma moça que por cinco meses trabalhou em Wisconsin como camareira. Ganhava bem e com o que ganhou atravessou os Estados Unidos de leste a oeste. Mas teve o bom senso de voltar. Hoje trabalha na revista mais importante do Brasil. Ganha menos do que quando arrumava camas nos States. Mas logo entendeu que arrumar camas ou lavar pratos não leva a nada… Arrumando camas ou lavando pratos, você pode até ganhar bem. Mas acabará convivendo apenas com pessoas que arrumam camas ou lavam pratos. Não é o melhor ambiente intelectual para quem quer entender o mundo e a vida.” Chegou a hora de falar um pouco sobre o que Janer escreveu.

To begin with, nunca conheci uma pessoa que nasceu para lavar pratos; um Pavarotti da louça, digamos. Mas essa não é a questão, não. Em Londres estou há cinco anos, e louça nunca lavei, a não ser em casa. Porém, trabalhei por anos num coffee shop, e lá, entre outras, passava pano no chão com espantosa frequência. E era um obstinado. Nunca fui frugal com tão ordinária atividade. Passava o mop e cantava, cantava o nosso Brasil. Ninguém entendia nada, mas todos gostavam e sorriam, e diziam: Mopear o chão realmente te inspira. Dizia, de mim para mim: Não sou um Pavarotti do pano de chão; apenas preciso, ante o básico, tornar minha vida suportável, no mínimo; agradável, no máximo. Meu querido amigo e intelectual João Costa passou pelo mesmo, talvez com diferente humor. Mas passou. Trabalhou por anos numa loja de acessórios femininos, vejam só. Aquela figura tosca, único homem na loja, tendo que colocar diademas na própria cabeça, broches pueris na própria camisa, até furar orelhas das clientes. Isso mesmo! Ele era proficiente na arte, um Pavarotti do piercing. Reclamava sempre, seu charme. Hoje João não fura mais orelhas, não usa diademas como alegoria. Hoje em não passo pano no chão. Melhoramos bastante, ele mais que eu. Salubridade, entendem? Entretanto, tivemos que passar pelo ordinário, pelo indesejável. Emigrar foi opção. Subemprego, uma exigência. Todavia, o fato de ter que passar pelo ordinário não nos tornou ordinários, tampouco tivemos que conviver apenas com pares baixos. Aliás, não sei na Suécia, mas em Londres o interessante, o aproveitável, o inspirador está em todos os níveis. Disse Fabiano Holanda, outro querido, após ler Janer: É por esse tipo de pensamento que somos uma nação de boçais, uns medíocres com cassaca Armani.

De acordo.


Londres, 20 de abril de 2008.

Saturday 5 April 2008

Sem críticas

Estava voltando à casa, numa típica tarde ensolarada de abril, espectador do panorama londrino a partir de um banco confortável no vagão do trem DLR – Docklands Light Railway. Talvez por vir do Brasil e com isso a imprecisão, talvez sendo realmente justo, vejo o sistema de transporte público britânico, o Transport for London, ou para os íntimos TFL, como impecável. Cachinho de uva, como diriam os românticos baratos. Se hoje o congestionamento impacienta qualquer cristão, isso se deve mais à população, União Européia e coisas afins que ao transporte em si. Seja metrô, ônibus ou trem. Ainda faz-me brilhar os olhos a manchete dos jornais diários de algum tempo átras, digamos um ano, sobre a namorada do príncipe William, a bela de cabelos cor de mel Kate Middleton. Diziam as manchetes, mais ou menos assim: “Ontem sendo recebida pela rainha, hoje fazendo compras e andando de transporte público.” Então, estampada como prova fatal vinha a foto da bela, dentro de um ônibus, olhando no vazio. Meu ego de cliente do TFL agradeceu.

Se andar de metrô, por vezes, se traduz em sufoco e impaciência, uma multidão de esteriótipos rodeando você, andar de DLR, pelo menos a rota que vai de Bank a King George V, a que pego, é prazer puro, uma deleite de quinze minutos pela Londres que eu adotei. O pequeno trem, essencialmente overground, traz-me de bandeja o centro financeiro de Londres, a City, do qual Canary Wharf é o coração, o rio Tâmisa e o charmoso pier próximo a estação de Limehouse, desfilando incontáveis iates e barcos.

Voltando, pois, à casa, vinha ruminando o que havia dito a Fabiano Holanda numa das nossas discussões homéricas. Não só esse, também João Costa e um enigmático Guilherme Vieira participavam. Outrora, nos tempos da Confraria Best-Seller, tais querelas eram common place, prato nosso de cada dia. Um assunto, um comentário a um artigo, uma simples opinião, ou seja, um pretexto e estava criado o campo de batalha: dois gladiadores e a arena virtual. No entanto, tirando os excessos normais e a teimosia das partes, as discussões eram intelectualmente estimulantes, creio, e traziam benefício não só aos ativos como aos passivos – ou por outra, os que tinham coragem para ler infindáveis e-mails. Passou a CBS, ficaram seus integrantes com o mesmo espírito estimulante.

Enviei um texto de Janer Cristaldo para comentários. De Janer não tenho nada a falar neste momento; apenas adiciono que, como de praxe, ouso dizer, o ponto de vista do habilidoso escriba era enviesado. Do meu imaginário, poderia ouvir o experiente ex-parisiense retortar: Estamos no campo das percepções, meu caro, portanto nada mais fiel quanto nossas divergentes opiniões. Passando…

Os quase cinco anos de Londres me trouxeram muito, acho. (Não sei se é só comigo, e dito isso já emendo: tenho uma dificuldade tremenda de avaliação quando estou em pleno andar da carruagem, na agitação do mar. Tudo torna-se muito confuso.) Londres é proficiente em construir e destruir sonhos, e talvez seja essa a sua característica mais marcante, para os que aqui passam várias primaveras. E foi aqui, terra de tantos famosos e loucos, onde construi/fortaleci convicções e preconceitos; e aqui também aprendi a cultivá-las em silêncio, esse só quebrado com alguns poucos “privilegiados”. Diria João Costa, seu mote desde os tempos do Mídia sem Máscara: “Não darei pérolas aos porcos!”. Nao é isso, não. Pelo menos para mim. Jõao tem o patrimônio das pérolas; eu, nem elas tenho. Apenas cansei. No erro ou no acerto, cansei do confronto indiferenciado. Aqui ou quando vou de férias a Natal, minha querida Natal, ouço absurdos que me dão calafrios, coisas que ruborizariam um perfeito cínico; um Jacques Chirac, digamos. Quem, todavia, receberia uma contra-argumentacao deste aqui pretencioso, hoje recebe um sorriso seguido de silêncio, e logo uma desconversa, se possivel for. Essa foi a melhor forma que encontrei, pelo menos até aqui, de conviver comigo mesmo. Outrora, dava alguma importancia ao mundo e o ambiente que me rodeava. Brigava, discutia, mexia e remexia, uma excitação só. Chegou o fim, portanto não tenho o menor interesse, pelo menos em público, no que vai de errado com o mundo e a visão das pessoas, onde essas erram. Que assim seja! Que a televisão impere e desinforme a todos; que cada um se sinta um deus grego. Pois, acima da crítica a terceiros está o silêncio para comigo mesmo.

Enfim, não tenho inclinação para Olavo de Carvalho. Fico com Peter Drucker.


Londres, 03 de abril de 2008.