Sunday 20 April 2008

Ordinário compensável

Entre as carinhosas respostas ao meu último texto, uma abriu-me largo sorriso. Não pela resposta em si, apesar de ter sido ela o ponta-pé deste artigo. O missivista? Darío Nota. E revelada a identidade, vamos à ficha.

Darío foi meu colega de trabalho anos atrás. Um atrevido poderia dizer – além de colega de trabalho, argentino. Mas não, não é isso. Ou melhor, isso também, mas algo mais. Estudante de Letras, professor de espanhol, o que ele mais gostava e ainda deve gostar, se a minha matreira observação não falha, era de um bom papo e um generoso decote. Como chamamos em inglês, para o primeiro, people person; para o segundo, womaniser.

Privilegiado por ter sido seu aluno quando o tempo me cabia, suas aulas eram sempre uma atividade social em meio a exigência professional, que por sua vez adequava-se docemente ao estilo do professor. Darío via com impaciência as fronteiras do livro didático da vez, e este era sobremaneira uma referência sutil à essência, para ele, do aprendizado, e o que unia o social ao didático: o debate. Com o debate, a troca de idéias, a classe sem fronteiras, o Gardel ia longe – aliás, se esbaldava no próprio lar. Tópico levantado pelo maestro, cada aluno era instigado a dar opiniões, por mais estúpidas que fossem, e por estupida entenda-se o sentimento de aluno para aluno, já que para o professor, pelo menos pela seriedade e atenção dedicada em seu olhar àquele exposto ao escrutínio, cada opinião era tratada com imperiosa relevância. E indo além, elas, as opiniões, eram estimuladas com perguntas e comentários do professor, ficando assim a mercê da auto-crítica e desenvolvimento. Guardo com imensa estima as aulas externas de Darío, em Ponta Negra, no Praia Shopping ou qualquer bar na orla da praia de Ponta Negra. É difícil pensar em aula num ambiente desse, por mais que so falássemos em espanhol. Melhor seria chamá-la de boemia didática. Igualmente, me deliciava quando, num sábado qualquer, estando só na minha sala trabalhando, sou interrompido com batidas na porta. Fulminante e respeitoso, entra Darío. “Ranyere, cabra safado, estou te incomodando?”. (Ele nunca incomodava e eu sempre deixava bem claro, porém sua reticência argentina era grossa.) “Comecou a estudar na minha sala uma menina que você precisa ver, rapaz. Nunca vi igual!! Sai da sala, vamos lá fora. É intervalo, deixa eu te apresentá-la.” E saíamos os dois, ansiosos, ansiosos.

Mas voltando à resposta do meu querido Darío: “Obrigado pelo texto. Confuso pelo válido pelo exercício. Abraços. Darío” Nunca duvidei da proficiência do argentino na língua de Cabral, portanto faço uso da amizade para meter um “mas” no lugar do primeiro “pelo”. Cometido o atrevimento, vamos ao que interessa.

Disse Janer Cristaldo, o habilidoso escriba a quem me referi no artigo passado: “Eu também migrei um dia. Foi no início dos anos 70. Percorri toda a Europa e escolhi um país para ficar, a Suécia… Lá vivi um ano, aprendi a língua do país, mas não a ponto de usá-la com perfeição. Olhei, vi... e voltei. Voltei quando chegou a hora de lavar pratos. Nunca lavei pratos em minha casa, não iria lavá-los para suecos. Ganharia três ou quatro vezes mais que um jornalista no Brasil. Mas considerei que não havia nascido para lavar pratos.” E ainda: “Conheço de muito perto uma moça que por cinco meses trabalhou em Wisconsin como camareira. Ganhava bem e com o que ganhou atravessou os Estados Unidos de leste a oeste. Mas teve o bom senso de voltar. Hoje trabalha na revista mais importante do Brasil. Ganha menos do que quando arrumava camas nos States. Mas logo entendeu que arrumar camas ou lavar pratos não leva a nada… Arrumando camas ou lavando pratos, você pode até ganhar bem. Mas acabará convivendo apenas com pessoas que arrumam camas ou lavam pratos. Não é o melhor ambiente intelectual para quem quer entender o mundo e a vida.” Chegou a hora de falar um pouco sobre o que Janer escreveu.

To begin with, nunca conheci uma pessoa que nasceu para lavar pratos; um Pavarotti da louça, digamos. Mas essa não é a questão, não. Em Londres estou há cinco anos, e louça nunca lavei, a não ser em casa. Porém, trabalhei por anos num coffee shop, e lá, entre outras, passava pano no chão com espantosa frequência. E era um obstinado. Nunca fui frugal com tão ordinária atividade. Passava o mop e cantava, cantava o nosso Brasil. Ninguém entendia nada, mas todos gostavam e sorriam, e diziam: Mopear o chão realmente te inspira. Dizia, de mim para mim: Não sou um Pavarotti do pano de chão; apenas preciso, ante o básico, tornar minha vida suportável, no mínimo; agradável, no máximo. Meu querido amigo e intelectual João Costa passou pelo mesmo, talvez com diferente humor. Mas passou. Trabalhou por anos numa loja de acessórios femininos, vejam só. Aquela figura tosca, único homem na loja, tendo que colocar diademas na própria cabeça, broches pueris na própria camisa, até furar orelhas das clientes. Isso mesmo! Ele era proficiente na arte, um Pavarotti do piercing. Reclamava sempre, seu charme. Hoje João não fura mais orelhas, não usa diademas como alegoria. Hoje em não passo pano no chão. Melhoramos bastante, ele mais que eu. Salubridade, entendem? Entretanto, tivemos que passar pelo ordinário, pelo indesejável. Emigrar foi opção. Subemprego, uma exigência. Todavia, o fato de ter que passar pelo ordinário não nos tornou ordinários, tampouco tivemos que conviver apenas com pares baixos. Aliás, não sei na Suécia, mas em Londres o interessante, o aproveitável, o inspirador está em todos os níveis. Disse Fabiano Holanda, outro querido, após ler Janer: É por esse tipo de pensamento que somos uma nação de boçais, uns medíocres com cassaca Armani.

De acordo.


Londres, 20 de abril de 2008.

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